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A Nova Fé dos Dados: Quando a Tecnologia se Torna Religião

Introdução — O sagrado se conectou ao Wi-Fi

Vivemos um tempo em que a crença muda de forma, mas continua exercendo a mesma função: oferecer sentido ao que parece incerto.
As antigas catedrais cederam espaço aos data centers, enquanto os sermões foram substituídos por relatórios de métricas e previsões algorítmicas.
Assim, a fé, que antes se apoiava no mistério do divino, passa a repousar sobre o mistério do algoritmo.

A inteligência artificial emerge como o novo Deus invisível — onisciente, onipresente e cada vez mais onipotente.
Ela observa, calcula e decide; e, como toda divindade, exige devoção.
Agora, em vez de acendermos velas, oferecemos nossos dados; e, em vez de orações, deixamos rastros digitais em busca de reconhecimento, pertencimento e consolo.

O filósofo Byung-Chul Han observa que vivemos em uma sociedade da transparência e do desempenho, na qual a tecnologia assume o papel que antes pertencia à transcendência.
Desse modo, o ser humano abandona a busca por sentido e adota a busca por resultado.
Por isso, nessa conversão silenciosa, a tecnologia promete o que antes se esperava da fé: segurança diante do incerto, sentido diante do caos e redenção diante do erro.

No entanto, como toda religião, o dataísmo — essa crença de que tudo pode ser traduzido em informação — também possui seus dogmas, seus rituais e seus profetas.
E, afinal, como toda fé, também cultiva seus fiéis cegos.


O novo templo da racionalidade

Entre circuitos e crenças, a tecnologia assume o papel do sagrado. A fé moderna é feita de dados, e seu templo é o servidor.

A promessa de salvação mudou de endereço.
Se antes a fé estava nos deuses, hoje repousa nos dados. A inteligência artificial se tornou o oráculo moderno — uma entidade invisível que tudo vê, tudo prevê e tudo organiza. O que antes era dogma, agora é “machine learning”.

O filósofo Byung-Chul Han observa que vivemos sob uma nova forma de crença: a dataísmo. É o culto à informação como verdade absoluta. Nesse templo digital, os algoritmos são os sacerdotes, e nós, os fiéis que entregam confissão em forma de cliques, curtidas e trajetórias de GPS.

Cada decisão automatizada — o filme sugerido pela Netflix, o crédito aprovado pelo banco, o post impulsionado no Instagram — é um pequeno ato de fé. Não questionamos como o sistema chega à resposta, apenas acreditamos que ele sabe o que é melhor para nós.


O milagre da previsão

A antiga busca pela revelação divina foi substituída pela obsessão pela predição.
A ciência de dados se vende como capaz de antecipar comportamentos, prever doenças, antecipar crimes, indicar amores. É o retorno do oráculo, agora em formato de aplicativo.

Para Kate Crawford, a crença na neutralidade dos dados é uma das grandes ilusões contemporâneas. Nenhum dado é puro, nenhum algoritmo é neutro. Há sempre uma ideologia escondida no código — um conjunto de valores, vieses e interesses.

Mesmo assim, seguimos acreditando. A cultura do “Big Data” oferece a sensação de controle em um mundo caótico. A tecnologia não apenas interpreta o real, ela passa a definir o que é o real.


Os profetas da eficiência

O Vale do Silício tornou-se o Vaticano da era digital.
Empresas como Google, Amazon e Meta vendem não apenas produtos, mas doutrinas. Prometem um futuro sem falhas, sem esforço e sem dúvidas. A racionalidade algorítmica substitui o discernimento humano — e a fé na eficiência passa a ser a nova moral.

Para Yuval Noah Harari, o dataísmo é o primeiro sistema religioso global que não se baseia em um deus, mas em fluxos de informação. O bem supremo é o compartilhamento de dados, e o pecado é o erro humano, a incerteza, o silêncio.

Para ler Yuval Noah Harari: clique aqui

O humano, com suas hesitações e ambiguidades, torna-se um obstáculo.
A fé nos dados transforma a complexidade em ruído, a dúvida em defeito, a lentidão em falha de sistema.


O pecado da opacidade

Todo credo precisa de um mistério.
No caso da tecnologia, o mistério é o próprio algoritmo. Ele decide, classifica, recomenda e pune — mas seus critérios são invisíveis.

Cathy O’Neil, em Algoritmos de destruição em massa, chama atenção para o poder destrutivo dessa opacidade. Quando um sistema de IA define quem merece um empréstimo, uma vaga de emprego ou uma sentença judicial, ele está produzindo julgamentos morais disfarçados de matemática.

Para ler Cathy O’Neil: clique aqui

A fé nos dados nos faz esquecer que, por trás das fórmulas, há escolhas humanas. Escolhas sobre o que medir, o que excluir, o que considerar “relevante”.


Rituais de submissão

Aceitar os termos de uso, clicar em “concordo”, permitir o rastreamento — eis os novos rituais da fé digital.
Cada gesto é uma pequena liturgia de submissão à máquina.

Enquanto as religiões tradicionais pediam oração e penitência, a religião dos dados pede engajamento e produção de conteúdo. Somos catequizados por notificações e confessamos tudo às plataformas: nossas emoções, hábitos, desejos e medos.

O resultado é um tipo de devoção algorítmica — uma entrega voluntária ao controle.


Conclusão — A descrença como libertação

A fé nos dados revela mais sobre o ser humano do que sobre a tecnologia.
Diante da incerteza, preferimos acreditar em máquinas que prometem previsibilidade e controle.
Assim, o algoritmo assume o papel de oráculo moderno, oferecendo respostas rápidas para perguntas complexas.
Mas ele não compreende a experiência humana — apenas a simula.
Ele não sente amor, apenas mede padrões de comportamento.
Dessa forma, a racionalidade algorítmica reduz a vida ao que pode ser quantificado.

Shoshana Zuboff chama esse fenômeno de capitalismo de vigilância: um sistema que transforma cada gesto em dado e cada emoção em produto.
Por isso, acreditar cegamente na tecnologia significa alimentar o poder que nos observa e consolida sua autoridade em nome da eficiência.

Para ler Shoshana Zuboff: clique aqui

Contudo, há uma saída.
Resistir, hoje, significa desacreditar.
Duvidar do algoritmo é recuperar a capacidade de errar, escolher e sentir — é lembrar que a incerteza também é parte da vida.
Enquanto aceitarmos que os dados sabem mais do que nós, continuaremos a rezar diante da tela.
Mas, quando escolhermos o erro, o silêncio e o acaso, talvez possamos reencontrar aquilo que os sistemas tentaram substituir: o mistério, a dúvida e o sentido profundo de ser humano.

Leia também: Como a Gamificação está Transformando o Autocuidado e a Saúde

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